Eu não sei você, mas eu me desintegro neste período do ano em Brasília. E não é de agora. Vivo aqui há 54 anos, cresci respirando a poeira vermelha que alimenta a capital. Sou do tempo que rodamoinhos bailavam pelos terrenos das quadras ainda não construídas, cena assustadoramente encantadora. Quando perdiam a força e se desfaziam no ar, uma chuva de pó invadia olhos, bocas, ouvidos, entrava pela janela, dormia em nossas camas. Dona Seca deveria ser minha boa amiga, não é.
Clarice Lispector visitou Brasília algumas vezes, e com sua escrita árida, descreveu assim a instigante paisagem do cerrado:
“- A luz de Brasília me deixa cega. Esqueci os óculos escuros no hotel e fui invadida por uma terrível luz branca. Mas Brasília é vermelha. E é completamente nua. Não há jeito da gente não ser exposta nessa cidade. Embora haja ar sem poluição: respira-se bem, um pouco bem demais, o nariz seco.”
Comecei a ler Clarice muito jovem e as sensações que ela descreve, devem ter me impregnado de alguma maneira. Não saio sem óculos escuros, o reflexo do céu me deixa cega.
A última vez que choveu no DF foi no dia 04 de junho. De acordo com o Inmet, a chuva só deve dar o ar da graça na segunda quinzena de setembro. Estamos em estado de Alerta Laranja, que é quando a umidade relativa do ar chega a níveis críticos, abaixo de 20%.
Em 2017, nesta época, a umidade chegou a inacreditáveis 9%. Nem vou relembrar a quantidade de adultos e bebês doentes, consequência da instabilidade climática e da incompetência administrativa. Hospitais lotados, falta de médicos, descaso, mortes. A novela de terror que nunca tem fim.
Então vamos falar de água. Quem não se lembra das nossas barragens secas e a luta pelo racionamento? Estamos acostumados a gastar como se não houvesse amanhã: a varrer calçadas com mangueira, a usar litros para espanar a poeira do carro, encher piscina que nunca são usadas, tomar banho de meia-hora, lavar toda a louça sem fechar a torneira, milhões de exemplos do desperdício. A conta já chegou e é alta. Este ano, o brasiliense está livre do sacrifício. Sacrifício, aliás, que não é para todos, tem endereço certo. A dobradinha seca & calor no estranho inverno de Brasília é sinônimo de gastança. O reservatório da barragem que abastece quase todo o DF, a do Descoberto, estava a 100% no fim de junho. Está caindo rápido, já entrou na casa de 91%. É assim que começa.
E como eu estava falando antes, a estiagem não combina comigo. Tenho tonteiras, moleza, enjoos, durmo mal. Pouco saio de casa, não quero enfrentar o clarão do dia e nem a paisagem ressecada. Quando possível, aproveito a época para fugir do Centro-Oeste em chamas e literalmente, ops, simbolicamente lavar minh’alma. Sou uma anfíbia, uma salamandra.
Vou, mas volto logo. Meu terreno é esse, feito de barro vermelho. As árvores no caminho, contorcidas e desfolhadas, são encantadoras. Pinturas sem molduras. A paisagem encoberta por um véu branco insinua neblina no topo das montanhas. O ritmo do dia é bem mais lento, se vive mais.
E mais uma vez, faço minhas as palavras de Lispector:
“- Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo do meu sonho é uma lucidez.”
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