por Maria Amélia Elói* |

 

“Boa noite. Diga ao menos boa noite. Abra ao menos a janela. A serenata é pra vocêêêêê, ôôôôôô…” Assim começavam as serenatas do meu grupo de jovens, lá pelos mil novecentos e muitos, quase dois mil. Na verdade, a cantoria era só mais um pretexto para reunir gente querida, desengonçada e quase romântica nas ruas de TaguaYork, a suburbana mais elegante do quadradinho retangular que o mapa designa DF.

Só um dos amigos, o mais velho, dirigia. Então, íamos todos na kombi craquelenta dele, movidos pela coragem e desafinação próprias da juventude. Bastava um violão de cordas bambas. Começávamos em Taguatinga Sul, depois passávamos no centro, perto da Praça do Relógio, até Taguá Norte. Isso varava a noite e a madrugada. E nos enrouquecia e causava fome e cansaço. Parávamos em frente a cada casa, cantávamos até a janela abrir e depois entregávamos uma rosa para o homenageado — geralmente a mãe, o pai ou a avó de um dos amigos. A segunda música também era sempre a mesma: Missa da flor (alguns diziam Missão da flor), uma versão meio tosca de Here, there and everywhere, dos Beatles, que terminava bem melosa: “Sou feliz, pois amo a flor, e assim, amo você”. Que é versão mal-ajambrada é uma opinião de hoje. Naquela época, eu achava a letra superfina.

Às vezes a mãe não acordava, às vezes não estava em casa, às vezes aparecia rápido, de camisola, para agradecer, meio sem graça, às vezes pedia mais uma canção. Aí o jeito era cantar Andança, a outra única do repertório: “Rodei de roda, andei. Dança da moda eu sei. Cansei de ser sozinha. Verso encantado usei. Meu namorado é rei…” (e trocávamos por gay e desembestávamos a rir da bobeira).

Um dia um vizinho ficou bem bravo por ter sido acordado com a barulheira e mandou um rojão pra cima do nosso grupo. Só assustou. Não feriu ninguém. Noutro dia um cachorro atacou a dona da voz mais aguda. A coitada ficou bem sentida e com os cambitos arranhados. Noutra ocasião, assistimos à discussão de três inquilinas de apartamentos diferentes de edifício antigo de uma CSB. Cada qual saiu à sacada, com ar apaixonado, e, ao se deparar com as outras candidatas, sacou palavrões bem robustos, pleiteando pra si a homenagem. As mulheres bufavam, no afã do amor, mais puro amor, até que a madrinha do nosso amigo, moradora do 402, gritou um “A serenata é pra mim, mas podem ouvir também” que acalmou os ânimos.

Ontem, depois de cem serenatas, vivi mais uma. Mais uma vez especial, para guardar na caixinha das boas memórias. Participei só como ouvinte, de trás da janela de cortinas valsantes. Esta seresta, sim, bem ensaiada, profissional, com voz, instrumentos, melodia e acordes regidos pela lua cheia. Uma pequena banda mascarada e um cantor de cara exposta se apresentavam na calçada para o senhor aniversariante, meu vizinho. Amigos e familiares numa pequena carreata, com balões ao vento. Música para driblar a solidão de dias isolados, afugentar o sopro do tempo de não abraços e serenar os medos de horrores muito vivos. Comemoração dos 90 anos do Sr. Jorge, que foi tenor num coral do Espírito Santo.

Os músicos não trouxeram Missa da flor, mas canções mais antigas e sofisticadas das serestas de mais antigamente, um repertório capaz de consolar tristezas, arrepiar cílios e corações. “Olho a rosa na janela, sonho um sonho pequenino. Se eu pudesse ser menino, eu roubava esta rosa e ofertava todo prosa à primeira namorada…”, “Lua, manda tua luz prateada despertar a minha amada…”, “Aquela flor me faz chorar, me faz lembrar do nosso encontro ao luar nas lindas noites de verão…”.

Tomando para mim aquela tocata, muito dentro do canto do meu mundo, em mim mesmada e sem qualquer máscara, eu fiz minha própria serenata. Cantarolei com a alma, em epifania, saudosa da juventude que não volta, feliz pelos sonhos que ainda ouso e ávida de um futuro que me receba e entusiasme. “Bate outra vez com esperanças o meu coração…”.

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Maria Amélia Elói é escritora, jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela UnB. Atualmente se dedica a projetos culturais na Câmara dos Deputados. Pela editora Penalux, publicou o livro de crônicas Um milagre para cada corcova (2016) e participou da antologia de contos Novena para pecar em paz (2017). Integra o Mulherio das Letras, colabora com revistas literárias e ousa acreditar em tempos melhores.