Theo G. Alves * |
É com alguma frequência que tenho lembrado de um verso do Zeca Baleiro em que ele canta “A saudade é Brigitte Bardot acenando com a mão num filme muito antigo”, da música que leva o nome da atriz. Apesar da redundância gramatical, a evocação da imagem fabulosa de uma jovem, linda e imponente Bardot acenando em um adeus àquele que se afasta dela sempre me pareceu uma imagem precisa da saudade que sentimos de quem amamos. Toda a beleza melancólica dessa cena, desenhada em preto e branco, contrastando os cabelos loiros e volumosos da atriz francesa com um possível fundo negro de noite parisiense, traduz o que há de belo e lânguido na saudade.
Por outro lado, Chico Buarque traz uma saudade brutal a destroçar quem ouve Zizi Possi cantar “A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”, em “Pedaço de mim”. A melancolia da saudade nessa letra é substituída pelo desespero da perda profunda, irrecuperável e dilacerante, do que não pode mais ser reencontrado, perdido para sempre, já que a saudade pode ser também cruel e implacável. Aliás, poucas coisas foram tão bem ditas a respeito de saudade quanto as imagens que Chico escreveu nessa música.
Nestes últimos meses parece-me que estamos todos entre Brigitte Bardot e esse quarto que jamais será ocupado novamente, divididos entre contar os dias em mais um ou menos um, sem saber até onde essa matemática vai. Ainda mais aos domingos, que sempre foram dias de certa melancolia, especialmente depois da alegria dos tradicionais almoços em família, da preguiça que se abatia e da satisfação que ia dando lugar, aos poucos, a uma pontinha de tristeza que acompanhava o pôr do sol: a beleza triste, como um samba do Cartola.
Agora, todos os dias da semana têm um pouco de domingo. E a saudade tem parte nisso, que vai nos apertando num abraço cada vez mais demorado, sufocando, e precisamos lembrar de respirar para que ela adormeça em nosso colo, para nos fazer sonhar com as imagens de uma avó cozinhando em panelas grandes e dizendo coisas muito sábias ou com a memória dos filhos espalhados pelo sofá, com barulhos de videogame que já nem parecem tão irritantes frente à falta que passaram a fazer. Surgem as imagens das mães, dos pais, das tias, dos amores das nossas vidas, das pessoas a quem nos acostumamos, daquelas com quem
gostamos de conversar, de beber, de fazer passar o tempo.
Hoje é domingo e de quem sentimos saudades deve estar revirando discos, livros ou vendo tv distraidamente, jogando videogame em outra sala, pondo em ordem as tarefas do dia, vendo a chuva no portão de casa. Talvez, nossa saudade tenha também a dureza do retorno impossível, do encontro que não se repetirá: a “metade amputada de mim” cantada por Chico.
Toda saudade parece uma espécie de fracasso, de perda. A impossibilidade de estar onde desejamos, com quem queremos. E assim seguimos na tentativa de recriar a ideia de presença com as chamadas de vídeo e as lives, que transmitem shows, entrevistas ou servem apenas para conversar em uma nova espécie de lugar público, de não-lugar. Perceba como é curioso quando as pessoas dizem “nos encontramos aqui em breve”, por exemplo, ao se referirem às reuniões de trabalho, aulas ou apresentações realizadas pela internet.
Ao fim e ao cabo (aqui deve ser saudade de Machado de Assis), se tivermos sorte, também deve haver pessoas sentindo saudades de nós. Com sorte, somos a Brigitte Bardot de alguém e acenamos esperançosamente neste filme muito antigo até ser possível nos abraçarmos outra vez.
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* Theo G. Alves é escritor, fotógrafo e professor. Publicou poesias em Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis, A Máquina de Avessar os Dias e Doce Azedo Amaro. Nos contos, escreveu Por que não Enterramos o Cão e seu último livro é de crônicas: A Cartomante que Adivinha o Presente. Com a alma feminina que herdou no seu Rio Grande do Norte, nos oferece hoje essa crônica que fala de saudades, tempo, anseios e desafios. Para ter seus livros é só mandar o email para [email protected]