por Nazaré Bretas*

O assassinato do jovem de quatorze anos dói em mim. Desde o 18 de maio, essa dor me ocupa, não cessa. Não entendi de início as razões e a força desse sentir, amortecida que tenho estado quanto a luto e revolta diante de mortes de roteiro similar: a mesma polícia, a mesma cor de pele e característica dos CEP dos assassinados. E, invariavelmente, o mesmo desfecho: impunidade.

São muitas as mortes. Uma a cada vinte e três minutos, mais de duas por hora, mais de sessenta por dia, mais de mil e oitocentas por mês, mais… Muito mais do que posso suportar. E, sendo insuportável, vinha sufocando a dor, calando o grito, secando a lágrima, detrás do não saber (Do não querer saber? Do não suportar saber?)

Das mortes passadas, não conheço os nomes, os rostos, o detalhe da história. Talvez por não saber para onde dirigir a dor derivada de qualquer delas, impotente enquanto outra já vem, empilhando-se em estatística desprovida de sentimento ou sentido.

Talvez a dor de agora venha de saber. Do querer saber, sendo insuportável.

Sim, sei o nome do jovem morto pelo fuzil. O nome é João Pedro, certamente escolhido com todo cuidado pelos pais de primeiro filho, vivendo em CEP onde nascer tem sido perigo. Mesmo que o nome, digo as toponímias, leve a pensar o completo contrário. Praia da Luz, município de São Gonçalo. Mas os símbolos colados ao lugar de morada, não se prestam à proteção. Tampouco valeu a referência dobrada escolhida em batismo para o primogênito: João. Pedro. Se havia esperança que a dupla de santos ou a Luz que nomeia a Praia onde moram protegeria o menino, ela se mostrou vã. Também isto me dói.

Mas sei mais que o nome. Sei das fotos posadas, o sorriso que seria de todo impossível para quem não fosse da paz. Tanto assim era que, soube depois, que João Pedro tinha sonhos, mais que isto planejava seguir firme com os estudos e se tornar advogado, ser agente de Justiça para os injustiçados de sua vizinhança. Saber desse sonho, do plano frustrado, me dói lá no fundo. A dor se estende quando imagino os efeitos nos sonhos dos outros, os que testemunharam. Penso neles de coração apertado, porque não creio que a partir do 18 de maio eles possam dormir.

Mais que nome e o rosto, mais que o endereço, sei da conversa do menino com Dona Rafaela, a mãe preocupada com o som dos helicópteros voando em círculo ali perto, sobre sua cabeça. Posso vê-lo, contrariado, pausando o jogo para responder com pedido de calma, expresso com a segurança de que bandido não era, com bandido não se misturava. E, o mais importante: estava em casa. Imaginar essa confiança se quebrando nas cenas seguintes, me sufoca, tira o ar.

Vejo os homens cercando a casa, o som do helicóptero, os tiros disparados enquanto o jovem erguia os braços, deixando o controle do videogame caído no chão, o grito dos primos, o seu próprio, e vão, pedido de ajuda. Depois o helicóptero, ele já não esperava ajuda. A rota tomada não seria em direção a salvamento; os agentes do Estado buscariam encobrir o crime sem nome. Zigue-zagues que soubemos depois: da Praia da Luz para a insuspeita Lagoa, a da Zonal Sul, para depois baixar ali perto, Tribobó.

Não é pouco o sofrimento por saber tanto assim. Mas ainda me vejo a imaginar o martírio de   dezessete horas de duração, desde o sequestro do jovem, da decolagem do helicóptero da casa do primo. Em verdade, desse arremate da sádica saga do 18 de maio, na Praia da Luz, são poucas as coisas que sei com certeza. Sei que na décima primeira hora depois do sequestro, a sociedade se manifestou, levantou hashtag #OndeEstáJoãoPedro. Naquele momento, a destruição das provas já se completara, o silêncio das autoridades era ensurdecedor, o corpo de João Pedro esfriava. Nessas horas terríveis, a esperança de Seu Neilton, o temor de Dona Rafaela já tinham sido testados em visitas a hospitais da região, o desespero se instalava, não havia preparo para o que viria a seguir: corpo “com as características” de João Pedro no IML, ali perto, ali mesmo em São Gonçalo.

Não há palavra que exprima a dor provocada pela covarde estratégia dos que mataram, dos que acobertaram. Ainda acobertam.

Ao fim e ao cabo, é essa a dor que dói mais: penso nessas pessoas e não posso ver nelas o traço do humano. Por certo existe, ou ao menos existiu, em algum momento foram batizados com nomes bonitos, escolhidos por mães carinhosas. Mas se algum resto de humanidade sobrou nesses seres, não o sei. Desisti de buscar. E isto dói muito.

Parafraseando por oposição à Clarice, em seu magistral Mineirinho, devo declarar que já não sinto, já não quero, já não creio nos santos. Tampouco no que é terreno.

 

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*Nazaré é mineira de Piraúba e sempre se dedicou às ciências exatas. Foi abduzida pela literatura e, entre sertões e veredas, editou seu primeiro livro pelo Coletivo Editorial Maria Cobogó. Para conhecê-la mais www.facebook.com/almaeboi/

 

Imagem: Jornal da ANDES