por Ana Maria Lopes * |
Era 1890. Jovens escritores de Fortaleza, que se reuniam no Café Java, resolveram criar uma engenhosa e bem humorada sociedade literária. Criaram estatutos e leis “onde a boa gargalhada substitui o tonitroar da rethorica sediça e narcótica”. Fugiam dos costumes e do engessamento das agremiações literárias da época, “hirtas e parvas com seus estatutos massudos”.
A essa instituição deram o nome de Padaria Espiritual. Os escritores eram os “padeiros” e o “forno”, a sede da Padaria, num prédio da Rua Formosa. O produto era O Pão, jornal semanal que circulou até 1896.
Dele foi dito que “o programma da Padaria Espiritual é o mais curioso, o mais original, o mais fin de siécle que se pode conceber”. Isso, no melhor e mais lido jornal da cidade.
Um de seus fundadores foi Sabino Batista, ou Satyro Alegrete, como ele assinava seus textos. Sabino era casado com Ana Nogueira, moça de Icó e caçula de nove irmãos.
Desde cedo Ana mostrava seu gosto pela literatura. Ana lia, Ana escrevia, Ana recitava. Ana casou. A partir desse casamento Ana passou a fazer O Pão. Colaborava com seus poemas e ideias. A irreverência e o sarcasmo de Sabino se uniram à inteligência e suavidade de Ana e dessa boa massa formaram a família Nogueira Batista.
Ana Nogueira Batista vinha de uma linhagem abolicionista. Seu pai era deputado provincial e presidente da Sociedade Libertadora dos Escravos em Icó, cidade onde Ana nasceu. Cresceu como poeta e publicou, além do O Pão, em vários jornais e publicações da época. Traduziu Verlaine, Contesse de Noailles e Sully Prodhomme. Era uma mulher à frente de seu tempo. Não teve medo de se engajar no movimento pela abolição da escravatura, de entrar no mundo dos livros e de se revelar poeta para todo o país.
A fama de Ana parou no tempo e num país onde a memória é rasa e pouca. No entanto, foi agraciada no Dicionário de Mulheres do Brasil, um de seus poemas foi musicado pelo compositor Alberto Nepomuceno e agora virou bolsa.
Sim, vovó Ana (sou casada com o neto que a chama assim) foi contemplada por uma fábrica de bolsas, a House of Caju, que homenageia mulheres ilustres desse país. Logo, Ana Nogueira Batista está no mercado, como uma bolsa feminina, bolsa que guarda tudo o quê uma mulher gosta de guardar: batom, afeto, pente, grampos, lenços, esperança, liberdade, poesia e amor e, é claro, o pão.
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Trecho poema “Trovas Antigas” (1899), de Ana Nogueira Batista:
“Falemos, pois, das aladas / coisas de amor e ternura / libemos a taça pura / n’essas horas venturosas… / vamos de mãos enlaçadas / por êsses invios caminhos, / que importa se houver espinhos? / Bem junto florescem rosas.”
*Ana Maria Lopes (Nogueira Batista) é jornalista, escritora, fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó e quase homônima da “padeira” espiritual do texto.
Imagem: acrílico sobre tela de Lukas Beyer