por Priscila Fernandes Costa*
Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro, mas mora em Brasília desde 1969. É formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Começou a se aventurar na escrita ficcional aos 50 anos de idade e nunca mais parou de escrever. Autora de livros de contos e poesia, estreou no romance com o livro Todos os abismos convidam para um mergulho, com o qual chegou a finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, em 2018.
Nesta obra impactante de Cinthia vamos conhecer o cotidiano de Beatriz, uma assistente social do DF convivendo com as dores e as agruras de sua clientela composta por crianças abusadas, mulheres violentadas e maltratadas, maridos abusadores, estupradores e violentos, exploradores de mulheres, drogados, alcoólatras, traficantes, assassinos em série, pais negligentes, pedófilos, etc. Não bastasse os sofrimentos com o quais convive no dia a dia do trabalho, Beatriz traz consigo a dor de ter perdido sua única filha, que aos 14 anos de idade comete suicídio, depois de um prolongado período de depressão. Laura, a filha, aos cinco anos transformou-se numa criança que não sorria, não queria brincar e se refugiava por longos períodos em seu quarto. Apresentava, ainda, alguns sintomas incomuns tais como insônia, irritabilidade sem motivo aparente e choro convulsivo cada vez que se via separada dos pais. Beatriz sempre achou que esses comportamentos eram devidos à morte da cachorrinha da família. Pipoca, a cachorrinha, despendeu-se da mão de Laura para correr atrás de outro cachorro e acabou sendo atropelada diante da menina, que tudo assistiu sem esboçar nenhuma reação. Laura sequer chorou, mas a partir daí apresentou os primeiros sintomas. Passou, também, a se preocupar com a questão da morte, perguntando várias vezes se os pais iriam morrer e a ter medos noturnos a ponto de ter que dormir com o abajur aceso. Depois vieram os frequentes acidentes domésticos: esbarrões nas portas e nos móveis e quedas com cortes, luxações e torções. Um ano mais tarde Beatriz encontra Laura sentada sob o chuveiro, puxando os cabelos até arrancar tufos. Quando a mãe tenta impedi-la, passa a bater a cabeça na parede até sangrar. As automutilações ocorriam com bastante frequência. Somente quando estava com 12 anos veio o diagnóstico correto: Laura sofria de Depressão Severa. O sol negro da depressão venceu, tempos depois. Laura tomou muitos comprimidos com uma lata de cerveja, apagou a luz, se cobriu e virou para o lado, como quem vai dormir. Deixou para trás a vida atormentada. Na manhã seguinte o pai a encontrou morta.
O diagnóstico de depressão desaba contundente sobre Beatriz, trazendo consigo sentimentos de remorso e culpa. Chora abraçada aos joelhos por um bom tempo, depois se levanta e vai consolar o marido desolado. Em seguida, Beatriz sai de casa em busca de punição e de sexo. Pega o primeiro homem que a encara e transa com ele, um desconhecido que lhe diz coisas sujas e a trata como vadia. Encontrou enfim sua penitência e nunca mais parou de usar o sexo com estranhos como uma válvula de escape de suas dores.
Bernardo, seu marido, indignado e ferido com as traições de Beatriz, grita, xinga, se desespera e finalmente a manda embora, e ela vai, sem discutir ou argumentar. Por vingança, ele ainda tira-lhe a guarda da filha. Segundo a descrição de Beatriz, Bernardo é um homem profundo, inteligente e direto. Depois da morte da filha, eles mantém uma proximidade cordial, um pacto de tolerância mútua, que será rompido quando ele conhece Sofia, uma mulher cheia de vida, bonita, jovem, segura e moderna. Bernardo informa-lhe, então, que vai se casar e que será pai novamente. Daí nasce Mariana, outra filha. Meses depois, ele tem um AVC que o levará à morte. Ninguém estava a seu lado quando morreu, estava sozinho. Uma pessoa sozinha deveria pensar na própria morte. Que pode não ter tempo para pedir socorro, pensa Beatriz.
Beatriz, ela também, vem de um lar desestruturado e bastante abusivo. Sua família é composta por um irmão gêmeo, Gustavo, que mora no exterior e sua mãe, Maria Estela, que vive no Rio de Janeiro. Do pai, já morto, só restam as marcas dos maus tratos que ele lhe infligiu. Era um homem perigoso, um homem violento para quem a disciplina e as regras importavam mais do que qualquer afeto. Ela e o irmão acatavam as ordens paternas por puro medo dos castigos, que doíam muito. Além de apanhar, eram privados de comida e diversão e não podiam conversar um com o outro. Qualquer coisa podia ser motivo para os castigos, uma nota 7 ou 7,5 em qualquer disciplina, uma corrida dentro de casa, um banheiro molhado, um prato sujo na pia, uma cadeira fora do lugar, um tênis fora do armário, etc… e a TV não podia ser ligada. Isso fez com que Beatriz aprendesse a mentir cada vez mais. Na rua fazia tudo o que era proibido. Pensa que por isso tornou-se uma mulher incapaz de cuidar e proteger a própria filha, tal como sua mãe. Quando Laura morreu sentiu muita vergonha de si mesma.
A mãe também sofria os maus-tratos do marido e também tinha muito medo dele. Havia muita briga e tapas que deixavam marcas apenas nos lugares em que as roupas cobriam. Apanhava em silêncio para que os filhos não ouvissem. Era ameaçada de que se se separasse ficaria sem nada, de que perderia a guarda dos filhos ou de que a mataria se ela se envolvesse com outro homem. As ameaças eram trocadas por sexo e obediência. Ela fingia nada ver do que acontecia com os filhos.
Maria Estela tinha uma preferência explícita por Gustavo e uma relação hostil com Beatriz. Foi uma mulher infeliz a vida inteira e usou a própria miséria para atormentar a vida da filha. Nunca existiu nenhuma empatia, nenhum afeto entre as duas, apenas mágoa e ressentimento. Nunca houve uma frase, um gesto de aproximação ou qualquer indício que demonstrasse que ela se preocupava com a filha. No enterro da neta chegou ao ponto de dizer à Beatriz que a menina havia morrido por causa dela. Quando Maria Estela chega de surpresa à Brasilia, Beatriz é tomada de muita raiva. Diante da intromissão materna em sua vida, coloca pra fora anos de ressentimentos acumulados e finalmente a manda embora. Passado algum tempo, Gustavo retorna ao Brasil com o propósito de confrontar a irmã e diz-lhe que a mãe está com Alzheimer. Gustavo se mostra cortante, cobrando dela mais consideração e cuidado para com a mãe. Aos pouco Beatriz vai se dando conta de que a cumplicidade que ela acreditava existir entre ela e o irmão era unilateral.
Desenganos e decepções vão compondo a história de Beatriz, violência, abandono, desamor e abusos costuram seus vinte anos de Serviço Social. Jean Charles, um garoto de oito anos, é um dos casos que ela acompanha.Vítima de abusos sexuais e agressões diversas, é transferido, juntamente com sua mãe, para uma casa abrigo para escapar do pai pedófilo. Os abusos que ele infligia ao filho eram sempre acompanhados de palavras obscenas e ameaças. Nos olhos da criança vê-se medo, desconfiança e um pedido de socorro. Filho e mãe estão indo para o interior de Minas Gerais para a casa da avó, onde ele pode brincar, comer bolo de milho, dormir na rede e tomar banho de rio. O pai, enraivecido pela fuga dos dois, vai atrás, mas eles já não estão mais lá. Tentando tirar da avó o paradeiro da mulher e do filho, bate com a cabeça dela no chão várias vezes. Como resultado ela foi internada em coma no hospital e ele foi preso; o advogado alega privação de sentidos. Depois de solto o pai de Jean Charles invade a casa abrigo e faz o filho de refém. Ele está armado e ameaça atirar na cabeça do menino. Beatriz é chamada, no meio da noite, a pedido da mãe. Na tensão do momento ela diz bem alto: “Você não manda nada, sabia? Nem aqui nem em lugar nenhum. Você é só um covarde que bate em velha, mulher e criança”. O tumulto que suas palavras provocam no agressor possibilita que Jean Charles corra e se proteja. Os policiais matam o homem quando ele aponta a arma para Beatriz.
A imprudência de Beatriz traz consequências: ela é afastada de suas atividades e terá que se submeter a uma avaliação psicológica. Essa determinação a coloca no consultório de Clarice, uma psiquiatra designada para avaliar e atestar se e quando Beatriz estará apta para retornar ao trabalho. Clarice recomenda seu retorno com a condição de que ela concorde em fazer terapia durante um ano, duas ou três vezes por semana, sem faltas, sem tentativas de controlar ou manipular e sem mentiras. Acordo firmado.
Ao longo dessa trajetória percorrida por Beatriz encontramos outras tragédias acompanhadas por ela. O caso de Antonio e Cícero, dois irmãos de 15 e 13 anos respectivamente, levados pelo Conselho Tutelar por estarem sendo explorados sexualmente, desde muito pequenos, pelo pai e com a anuência da mãe.
Ou ainda o caso de Maria Fernanda, 39 anos, casada, sem filhos, presa durante um ano dentro da própria casa, sofrendo ameaças, apanhando e sendo estuprada quase todos os dias pelo marido. Comia o que ele determinava, era privada de música, TV, livros, computador. Se reclamasse, apanhava. Maria Fernanda matou o marido por medo, em legítima defesa.
Isabel, a menina que não queria falar. Ao ser examinada constatou-se agressões físicas, mas sem indícios de abuso sexual. O principal suspeito foi o pai, que foi preso e mantido sob supervisão médica e psiquiátrica. Mas a verdade é bem outra. Isabel provocou os ferimentos no próprio corpo. Mais um caso de uma criança sofrendo de depressão, esta doença que come por dentro, que vai minando as pessoas, as relações. Só sofrimento, impaciência, cansaço e descrença.
Fazer a resenha do livro de Cinthia Kriemler não é uma tarefa fácil. Embora ela tenha uma escrita fluida e clara, o livro é escrito num estilo que contempla realidades cotidianas passadas e presentes, com uma narrativa que lembra, algumas vezes, um diário, e em outros momentos parece um exercício de livre associação, como se tudo o que é relatado se passasse em seu pensamento, numa espécie de diálogo consigo mesma. Sem meias palavras Cinthia escancara os abismos que nos habitam e revela o que há de pior em cada ser humano, de maneira crua e brutal. A violência nossa de cada dia.
A Dor me parece ser o personagem central do romance: dor por uma mente magoada pelos abusos que desqualificam e enfraquecem, dor de um psiquismo minado por transtornos que levam à depressão, dor devido ao amor mal sucedido ou não correspondido, dor por se ver no mundo absolutamente desamparado, dor presente na miséria, na fome, na velhice, na opressão, na solidão. E sobretudo a dor devastação causada pelo suicídio de alguém amado e desejado. “Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer.” Estes versos de Raquel de Queiroz estão na epígrafe do livro.
Em um vídeo recentemente divulgado pela internet ficamos sabendo que nos últimos 15 anos o número de suicídios de crianças na faixa de 10 a 14 anos sofreu um aumento de 200%. Cifra alarmante que nos convoca para olhar com mais cuidado para nossas crianças. Mas o que podemos dizer dos pais cujos filhos tiraram a própria vida? Como lidar com a culpa, com o sentimento de impotência, com a constatação da cegueira defensiva que recusa a ver os sinais da desorganização psíquica, com a raiva pela morte almejada e autoinfligida, com a impossibilidade de um luto realizado?
A psicanalista francesa de origem iuguslava Radimila Zygouris, num artigo intitulado Uma palavra que falta, chama a atenção para um fato de tão grande obviedade, mas que ao mesmo tempo passa absolutamente despercebido por nós: falta uma palavra para designar a mãe ou o pai que perdeu um filho, que está de luto por seu filho. Essa ausência existe, senão em todas as línguas, pelo menos em um número considerável delas. Como entender este vazio da língua? Para Radimila, a explicação para este vazio nas línguas está inscrita na história da humanidade, e a resposta se situa no intervalo que separa a fantasia da realidade, a fantasia vindo se situar justamente no lugar no qual a linguagem falha em nomear.
Em psicanálise fantasia e realidade são dois termos que se opõem, mas que mantém uma fronteira passível de transposição. Uma passagem possível entre realidade e fantasia seria a assombração. A assombração vem de algo que efetivamente aconteceu na realidade, mas que assumiu autonomia psíquica, tornando-se modalidade de espera de uma realidade futura. É a representação de um medo, e vem dar forma à angústia. Para os pais, a morte de uma criança é da ordem da assombração: não é raro encontrarmos pais que vivem assombrados pelo medo de que seus filhos venham a morrer. Ponte entre o passado ancestral e a espera de uma catástrofe futura. Retorno do passado no aqui e agora. Nesse sentido, a palavra que falta é representada pela fantasia que diz respeito à criança que sofreu um dano.
Historicamente, a tristeza causada pela perda de uma criança, ainda que essa morte seja frequente e faça parte do destino comum, diz respeito a um registro privado e não nomeia os pais em luto por ela – assim como também não existe uma palavra para designar os enlutados da fratria –, enquanto a morte de um adulto era inscrita socialmente e apontava uma posição passiva para os sujeitos enlutados, tais como órfã(o) ou viúvo(a). Do ponto de vista da coletividade a criança não tinha representação social.
Pode-se constatar a persistência, até o final do século XVII, do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática admitida e era, de fato, severamente castigada. No entanto, era praticado em segredo, talvez com bastante frequência, disfarçado sob a forma de acidentes. Tais acontecimentos faziam parte das coisas moralmente neutras, isto é, algo que, embora não confessado, não era considerado vergonhoso. Então pode-se pensar que a assombração sempre pronta a surgir na vida destes pais que perdem seus filhos diz respeito aos acontecimentos inscritos na história da humanidade onde muitas vezes o assassinato de crianças era praticado sem que isso fosse visto como um dano às família ou à sociedade. Nesse sentido, no nível do inconsciente, toda morte de criança é assassinato de criança.
Intrincação do singular e do coletivo nossos atos fazem história, história da qual a língua se torna memória, por meio das palavras, das metáforas, dos ditos e dos não-ditos. Ela veicula a memória de todos os possíveis, de todas as monstruosidades das quais os humanos são capazes. E se a língua ainda não gravou essa palavra que falta para designar a mãe e o pai que perdeu um filho, não permite, igualmente a este pai ou esta mãe ocupar uma posição passiva de vivo perante a morte de seu filho. Talvez isso se dê justamente por que não se pode falar de posição passiva do adulto ante tal acontecimento. A morte real da criança vem redobrar o fantasma da criança morta, da criança assassinada. Recobrimento do silêncio de si pelo silêncio do outro. O infans morto é, desse modo, o buraco negro da representação da palavra.
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*Priscila Fernandes Costa é psicóloga, psicanalista e fundadora do Percurso Psicanalítico de Brasília.
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