por Solange Cianni *|

 

  “Que alívio, essa aposta de olhos vendados, essa crença no caos, o conhecimento de que é da matéria disforme que poderá surgir o ouro alquímico, talvez.”

 

          Adoro comer brigadeiro morno na panela, com colherinha de café, sentada no sofá, assistindo a um bom filme, sou dessas: gulosa! Mas para ler, não, prefiro degustar cada palavra, reler uma parte que me tocou de maneira mais profunda, de olhar para o céu e viajar sentindo as palavras reverberando em mim, trazendo memórias, construindo imagens e relações com a minha vida. Faço questão das pausas!

 Enfim, respeitando o meu tempo lento de leitura, fechei o livro O Coração Pensa Constantemente, de Rosângela Vieira Rocha**, apegada, como sempre, desejando continuar. Rosângela tem uma maneira peculiar de contar suas histórias, na primeira pessoa, que me pega de jeito.  Jeitinho mineiro, legítimo:

… “para tomar banho, amarrava um saco plástico no braço e fui pelejando com banhos de gato….”.  

Eu, carioca da gema, não tenho o verbo pelejar no meu vocabulário. Acho uma graça! Ela passeia entre o passado e o presente com fluidez, riqueza de detalhes, olhar delicado e coragem para revelar segredos; uma surpresa a cada capítulo e um convite a passear por diferentes épocas:

… “Não tenho ideia de quando isso vai terminar. É estranho, por parecer irreal e ser real, fora de qualquer padrão conhecido. Quantos dias transcorrerão até o final deste gigantesco pesadelo?…” Diz ela sobre o nosso presente pandêmico.

Nas últimas páginas, confesso, emocionei-me com o sentimento de injustiça, expressado com tanta verdade e a constatação da impotência frente à morte:

…”vejo que fiz muitas coisas boas para Rubi. O que podia, o que sabia. Foi uma decepção sem tamanho saber de suas reações às minhas visitas….”

Saboreei cada capítulo, cuidadosamente temperado com amor, zelo, respeito e discrição, características da personalidade singular da autora adquiridos na rica infância nas Minas Gerais.

Já é o terceiro livro de sua autoria que leio e sempre me vejo sentada no sofá da sua sala, tomando um café passado na hora, com pão de queijo saindo do forno, ouvindo-a contar, encantada, como o seu coração pensa.

 

“Uma confusão, um caos onde seixos se misturam, joio e trigo andam juntos, lembranças boas e más, pessoas excelentes e péssimas. Não se fecha verdadeiramente nenhuma Gestalt, como pensávamos nos terríveis e maravilhosos anos setenta. Há sempre resquícios do passado, lodos ancestrais, belezas antigas, joias usadas, perfumes que já não sentimos, mas que continuam impressos na memória olfativa, palavras dos que não podem mais falar, mas que ainda gritam dentro de nós, palavras vivas, pois nada morre realmente.”

 

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*Solange Cianni é escritora, psicopedagoga, atriz e fundadora do Coletivo Editorial Maria Cobogó. É carioca, mas adora prosear tomando um cafezinho com pão de queijo.

**Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim (MG) e mora em Brasília. É escritora, jornalista, Mestre em Comunicação Social e advogada. A autora já recebeu vários prêmios literários, entre os quais o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG (1988) com o seu romance Véspera de Lua. Rosângela é colunista da revista literária digital Germina e integra o movimento cultural Mulherio das Letras. O coração pensa constantemente (2020, Arribaçã Editora) é o seu sexto romance.

Imagem: Foto da escritora Rosângela Vieira Rocha no museu Casa do Bentoca, Inhapim. O momento foi captado pela Teresinha Ribeiro Martins, da Secretaria de Cultura do município, em 2019. Aos domingos, após a missa, os moradores da área rural usam o cenário para tirarem fotos. A moldura azul os acolhe e, carinhosamente, a chamam de “janela da fama”.

Booktrailer de O Coração Pensa Constantemente