por Claudine M. D. Duarte * |

“Não fui para lá atrás disso. Você sabe tão bem quanto eu que a gente não consegue prever as coisas. Sua cabeça não lhe dá nenhum aviso sobre o caminho que você tomou, até que seja tarde demais. Só entendemos nossas escolhas depois que elas já foram feitas.”

Rudyard Kipling, em A Casa dos Desejos (1924)

 

Há um ano, a gente olhava pra Wuhan e não pensava que as cenas de Blade Runner seriam vividas por aqui. Escrevemos metas, inventamos sonhos, juramos ver mais os amigos, abraçar mais os entes queridos, ler mais livros, experimentar novos caminhos e até programamos, de novo, uma daquelas viagens da listinha (interminável) de lugares para visitar antes de morrer. Ridículas, as metas. Pra nosso desespero e do Pessoa, que se foi antes dessa história e, de ridículas, somente experimentou cartas de amor. Quem dera…

Não sabíamos que neste janeiro sentiríamos a dor das famílias dos 200 mil mortos por Covid aqui no Brasil; não imaginávamos as festas de final de ano sem abraços e, para muitos, sem festas; não concebíamos a falta de perspectiva do término da pandemia; não atinávamos máscaras e faceshields como itens necessários e ainda não elaboramos sermos nossos próprios inimigos. Talvez porque qualquer uma dessas coisas é, ao mesmo tempo, insólita e dolorosa.

Alguém escreveu que a gente deve esquecer esse ano que passou. Impossível. O Agualusa propõe que a gente cobre os abraços perdidos. Válido. O Nizan fechou o ano com uma pergunta: você aguenta ser feliz? Sem comentários. O Gabeira criou um Diário da Crise e, infelizmente, promete continuar a escrevê-lo neste 2021… É uma pena. Concordamos que o tema é indesejado, mas oportuno: “O imprevisto e o próprio absurdo nos espreitam.” Mundo desacreditado.

Em fevereiro, tivemos carnaval e muitas cores. Aglomerados por aqui, ignoramos a falta de vagas nos hospitais e cemitérios mundo afora. Muitos ainda acreditam no mundo, na vida e na humanidade. Fizeram bebês. Viramos mães, avós, bisavós. Seguimos. Um primeiro e solitário infectado aportou em São Paulo. Vinha da Itália que, por sua vez, espreitava seu assombro. A foto com os caixões em Bergamo rodou o mundo e choramos juntos a dor dos que não puderam se despedir de seus entes queridos. Ainda não acreditávamos que teríamos aqui os nossos caixões e os registros de nossa tristeza e nosso absurdo em fotos. Mundo assombrado.

Nos meses seguintes, perdemos ministros da Saúde que, aparentemente, entendiam de saúde. Arrumaram alguém que entendia de logística. Estranho. Muito estranho e inusitado (contém ironia) o planejamento para aquisição de vacinas e outros itens necessários para a grande campanha de imunização que esperamos paralisados. “O prefeito de joelhos / O bispo de olhos vermelhos / E o banqueiro com um milhão”[1]. Mundo despedaçado.

Mas se teve gente que morreu, gente que nasceu, também teve gente que se casou e gente que se descasou. Nem tudo obedeceu aos humores do medo desse ‘bichinho’ que nos cerca. Teve gente que leu muito, gente que escreveu muito, gente que deu cursos e gente que fez os cursos. Teve até gente que lançou livros. Teve gente que escreveu seu primeiro romance. Como teve gente que brincou no quintal, de cabra-cega, pique-pega e caça ao tesouro. Mas ninguém achou o tesouro. Não fica no quintal de ninguém. Tem gente que nem tem quintal. Mundo machucado.

Teve o povo das descobertas. Navegadores desses tempos. Descobriram a Rita Lobo, o arroz e o feijão. Usaram a panela de pressão – com o medo do tamanho certo. Descobriram o Mercado Livre, a Estante Virtual, o iFood, Rappi & companhia. Descobriram que ninguém precisa comprar peças novas para o guarda-roupa. Mas pra descobrirem que podem doar todo o armário e ficarem com apenas duas mudas de roupa, precisarão de algo com o tamanho dos mais de oitocentos quilômetros[2] entre a França e o Fim do Mundo. Certas coisas, somente se descobrem caminhando. Outras, retidos em casa. Isso pra quem tem casa, cartão de crédito e geladeira. Mundo desequilibrado.

Teve gente que não encontrou os filhos e outros que chegaram tarde para encontrar os pais. Seguimos. Acreditamos numa solução. Acreditamos em dias melhores. Acreditamos. Ficamos em casa a maior parte do ano, com encontros virtuais, justo quando dizíamos que o mundo digital nos encerrava em bolhas… ironia. O isolamento virou a coisa certa. Mundo pela janela.

Das janelas, vislumbramos praças vazias e outras janelas. Das janelas, sentimos nosso verde encolher: conseguimos o recorde de queimadas. Das janelas, não vimos os jovens a caminho da escola. Das janelas, ouvimos as sirenes das ambulâncias e dos bombeiros. Das janelas, contemplamos as desoladoras estatísticas. E pouco a pouco o mundo cedeu às restrições e voltou a viajar, a se encontrar, a festejar, ignorando ascendentes curvas de mortes. Mundo magoado.

Tivemos os heróis da pandemia, os ignorantes da pandemia e os artistas da pandemia.  Cada um com o seu público e um pódio distinto. Tristemente, alguns não viram este 2021. Amargamente, alguns são donos de decisões que nos afetam. Pelo e para o pior. Por sorte, alguns possuem consciência e compaixão. E as transformam em arte. “Mundo mundo vasto mundo / Se eu me chamasse Raimundo / Seria uma rima, não seria uma solução”[3].

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[1] “Geni e o Zepelim” (1978), música composta e cantada por Chico Buarque para a Ópera do Malandro

[2] Referência ao Caminho de Francês de Santiago de Compostela: https://www.vagamundos.pt/caminho-frances-de-santiago/

[3] “Poema de Sete Faces” (1930) de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

*Claudine M. D. Duarte é arquiteta, escritora, dramaturga e “extremamente” leitora. Coordena o projeto Calangos Leitores, finalista do Premio Jabuti (2018) na categoria Formação de Novos Leitores. É uma das fundadoras do Coletivo Editorial Maria Cobogó pelo qual publicou seus livros, Desencontos (2018) e Sete Pequenos Tumultos (2020). Isso mesmo: ela lançou um livro neste 2020.

Imagem: foto de @ichiroguerra de homenagem aos que se foram realizada por artistas de Brasília, direção de Hugo Rodas, julho/2020: Vigília Silenciosa. #quempartiueamordealguem