por Claudine M.D.Duarte  * |

Um fusca não dura cinquenta anos. Foi a primeira coisa que pensei ao ver o fusca azul parado na porta da minha casa. Fiz as contas. Não. Com certeza não era aquele. A placa? Quem se lembra de placas? O Rain Man. Mas ele não conheceu o fusca azul da minha tia.  É propriedade das lembranças que partilho com meus irmãos.

Nós éramos quatro. E ainda tinha um primo. Na frente, pai e mãe. O pai dirigindo. A mãe dizia: Haroldo, você errou a estrada. O pai dirigindo. Lá fora, escuro. Estrada de terra no interior de Goiás. A gente lá atrás. Como cabíamos todos naquele banco? E ainda tínhamos malas? Onde iam as malas? Até hoje, rimos e nos perguntamos: e as malas? O pai dirigindo. A mãe avisando. Parece que é próprio das mães avisarem. Sempre. O pai ignorando. Seria próprio dos pais ignorar sinais e avisos? A gente ria no banco de trás.

Meu irmão imitou minha mãe: a estrada tá errada… meu pai gritou um Fica quieto, menino. A gente riu. A gente sempre ria. Meu pai dirigindo, minha mãe olhava para fora: Eu já disse que a estrada não é essa. E não era. A estrada acabou num buraco. O fusca azul no buraco. A gente no buraco. Minha mãe chorava. A gente ria. A gente ri até hoje. A estrada não existia. Um pouco de lua, o carro emborcado e a gente em volta do buraco. Meu pai suspirava. Acho que pensava em como devolver um fusca amassado para a irmã dele. Meu primo também chorava. Fez xixi nas calças, quero minha mãe, vi um lobo, não gosto de lobos… A gente ria.

É um absurdo, mas a cada Natal ou outro encontro de família, o fusca azul comparece. Meu irmão tentou dirigi-lo uma vez. Ele tinha uns dez anos (eu, onze) e me chamou para dar uma volta. Estávamos na chácara de nossos avós. Entramos no carro, ele engatou a primeira e o carro obedeceu, saiu da garagem e seguimos pela trilha da entrada. Tudo ia muito bem. Acho que a gente até ria. A gente ria sempre. Aí apareceu uma curva e, do outro lado da curva, um outro carro. Meu irmão gritou Sujou, segura o volante. Meu pai!  Ele abriu a porta e pulou do carro em movimento. Não lembro de ter segurado o volante, nem de ter feito nada até que o carro parou numa depressão do terreno. Tinha um pequeno riacho e cipós. Muitos cipós. Puxei um cipó pra sair do carro. O cipó arrebentou. No Tarzan dá certo, pensei na hora.

Nem era meu pai. Era nosso avô. Bronca. Bronca. Bronca. Uma carroça daquelas com cavalo e tudo foi resgatá-lo. Meu irmão também precisou ser resgatado. Demorou uns vinte dias pra me contar que foi se esconder na igreja da vila. Entrou naquele quadradinho de madeira onde as pessoas vão contar dos pecados e coisas assim. Se julgou a salvo. Negociou perdão direto com quem manda. A gente ainda ri.

Quando nos lembramos do fusca azul, em seguida vem um fusca branco. Com meu irmão, óbvio. No final dos anos setenta morávamos em Brasília, sem pai nem mãe. Eu, na UnB. Ele, estudando para o vestibular. O fusca branco era meu. Mas os amigos eram dele. Roubaram a chave e foram passear… até encontrarem uma curva. O fusca capotou. Eles se desesperaram e resolveram ‘descapotar’ o fusca. Mas fizeram isso para o lado oposto. O fusca, como um bife sendo mergulhado no ovo e na farinha. Uma milanesa. Gira aqui. Gira lá. Sentido horário e voilá! Colocaram o fusca sobre as quatro rodas novamente e ligaram para o meu namorado… Sim.

Eles precisavam de alguém maior de idade, com carteira de habilitação e coragem pra assumir o acidente. Os policiais chegaram e não entenderam como alguém conseguiu capotar naquela via vicinal, a sessenta por hora? E a intriga maior: como o carro deu aquele duplo twist carpado parando em pé? Sei. Sabemos. Fusca não tem pé. Tem história. Pra gente rir.

Eu e meu irmão ainda rimos muito disso. Meu pai, enquanto estava vivo, escutava essas histórias e não ria. Rosnava. Assim pra dentro como devem ser os rosnados (não escutados). Meu primo nega que estivesse conosco naquele buraco. O namorado que assumiu a culpa pela inimaginável capotada virou marido, ex-marido e hoje partilhamos filhas, netos e garante que os policiais também riram dele. Os fuscas? Imagino que estão por aí. Outras histórias, outros acidentes, outros medos, outros risos, outras memórias.

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Claudine M. D. Duarte é escritora, e das boas. Além de contos, minicontos, crônicas e romances, escreve sem parar. Adapta a literatura para o teatro, edita livros, dá palestras e sempre faz uma limonada de qualquer limão. Ah! É uma das fundadoras do Coletivo Maria Cobogó!